SÃO PAULO – Universalizar o saneamento básico no Brasil é um desafio e tanto. Embora o país venha dando demonstrações de que este desafio entrou definitivamente na agenda de prioridades, ainda há muito pela frente. Em 2000, o Brasil e mais 188 nações assinaram a Declaração do Milênio das Nações Unidas, que previa o cumprimento de uma série de metas de combate à pobreza extrema, chamadas de Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). Entre elas, estava a de reduzir à metade, até 2015, a proporção da população de então sem acesso permanente à água e esgoto. A meta foi alcançada, mas a trajetória rumo à universalização dos serviços ainda está longe de terminar.
Segundo dados do Instituto Trata Brasil, 35 milhões de brasileiros, o equivalente a 17,5% da população, ainda vivem sem acesso a abastecimento de água tratada e outros 100 milhões, ou 50% da população, não tem serviço de coleta de esgoto. Mais da metade das escolas brasileiras não estão ligadas à rede de esgoto e apenas 40% dos efluentes em todo o País são tratados. Os outros 60% – o que, em um ano, equivale a cerca de 1,3 trilhões de litros de esgoto – são lançados sem tratamento na natureza.
Universalização e assentamentos irregulares
São poucas as cidades brasileiras que conseguiram alcançar a universalização dos serviços em suas áreas urbanas. Mas mesmo essas, em muitos casos, contam com um desafio extra, ainda mais difícil, que é levar o saneamento para os chamados “assentamentos irregulares”, também conhecidos, tecnicamente, como “aglomerados subnormais”.
Essas regiões nada mais são do que áreas ocupadas sem autorização e que têm como principal característica a irregularidade fundiária. Um bom exemplo são as favelas. Estas ocupações, frequentemente localizadas em terrenos particulares ou públicos invadidos, ou ainda em regiões de preservação ambiental – como margens de rios, encostas e topos de morro, igualmente invadidas -, são cronicamente mal atendidas por serviços públicos, inclusive saneamento básico. E a razão é relativamente simples: como o uso da área é irregular, quem ocupa não tem documentação que reconheça sequer a existência do terreno no formato em que ele é usado, muito menos a sua propriedade, o que inviabiliza a instalação de serviços públicos. Trata-se, portanto, de um desafio para as prefeituras e para as operadoras de saneamento, algumas das quais já reconhecem que esse é um problema a ser enfrentado. Levar serviços de qualidade para essas áreas é garantir mais saúde e qualidade de vida para as pessoas que lá residem e também garantir maior equilíbrio financeiro dessas companhias, possibilitando novos investimentos.
Um estudo divulgado recentemente pelo Instituto Trata Brasil ajudou a dimensionar o desafio que as áreas irregulares representam para a universalização do saneamento básico e o que ele representa para o caixa das empresas. E os números levantados impressionam. Em uma amostra de 63 municípios espalhados por 15 estados, foram identificados 6.026 assentamentos irregulares onde vivem 4,9 milhões de pessoas. Desta população, apenas 11,7% têm acesso à água e esgoto, enquanto 28,3% têm acesso só à água e 2,4%, só ao esgoto. A proporção de pessoas sem acesso algum aos serviços de saneamento – sejam eles na forma de água ou de esgoto – é de 72%.
Isso não significa que a população não esteja usando água e produzindo esgoto. Em muitos casos ocorre que esse consumo não é devidamente contabilizado e cobrado, já que a água é obtida por meio de ligações irregulares e o descarte do esgoto é feito de forma inadequada. O que cria outro problema. Segundo o mesmo estudo do Instituto Trata Brasil, a perda de arrecadação com serviços de saneamento entre os 100 maiores municípios do País é de, pelo menos, R$ 2,6 bilhões ao ano. Trata-se de uma perda média de R$ 26 milhões por município – valor que faria diferença no orçamento de qualquer cidade.
Regularização possível
Novos caminhos para a expansão do acesso ao saneamento básico nos chamados assentamentos irregulares têm ganhado tração nos últimos anos. Um exemplo é a experiência da Odebrecht Ambiental no município de Uruguaiana, extremo oeste do Rio Grande do Sul. Por lá a empresa garantiu a infraestrutura de saneamento na região conhecida como Beco da Cruz no Marduque, mostrando que há maneiras eficientes para moradores, municípios e concessionárias regularizarem o serviço de água e esgoto em assentamentos irregulares.
No beco – um terreno particular invadido por cerca de 200 pessoas divididas em 42 famílias – a água era clandestina e o recolhimento de esgoto, inexistente. “Como nas quadras próximas tinha gente com serviço regular, quem morava no beco puxava água irregularmente desses ramais”, diz Ericke Tavares, da Odebrecht Ambiental, concessionária responsável pelo serviço de água e esgoto em Uruguaiana que capitaneou o processo de regularização do beco.
O primeiro passo foi fazer um levantamento detalhado do terreno e de seus moradores. O contato inicial foi delicado, já que muitos temiam ter a água, então clandestina, cortada. “Deixamos claro que não estávamos lá pra cortar a água de ninguém e que queríamos oferecer um serviço melhor pelo qual eles pagariam uma tarifa adequada à renda deles”, afirma Tavares. Praticamente todos os moradores aceitaram as condições propostas pela concessionária. Com a distribuição regular, eles teriam água de qualidade garantida, abastecimento constante e sem variações de pressão, além de serviço de esgoto, à época lançado em um córrego a céu aberto que transbordava em épocas de chuva.
O passo seguinte envolveu a prefeitura de Uruguaiana, que, instada pela Associação de Moradores do Bairro Mascarenhas de Moraes, acionou a Secretaria Municipal de Ação Social e Habitação para dar início ao processo de regularização fundiária da região ocupada. Como o terreno onde estava o beco era particular, a prefeitura teve de promulgar um decreto para transformar a área em faixa de servidão de passagem. Isso liberou a instalação dos dutos de água e esgoto, efetivamente regularizando a área para o serviço de saneamento sem precisar dar propriedade final do terreno aos que o ocupavam.
Depois de dois meses de obras todas as 42 famílias passaram a ter água e esgoto em casa de maneira regular, com direito a hidrômetros individuais. “Hoje, a inadimplência é inferior a 20%”, diz Tavares. Instalações elétricas também foram feitas, com a regularização do serviço que antes era clandestino, como a água. “Esse tipo de obra tem impacto na cultura de uma comunidade”, afirma Tavares. Ele conta que os moradores cuidam da infraestrutura instalada e que pouca ou nenhuma manutenção tem sido necessária.
“O acesso a infraestrutura e a serviços públicos de qualidade são fatores capazes de transformar a vida de um cidadão, principalmente quando falamos de saneamento”, diz Fernando Santos-Reis diretor-presidente da Odebrecht Ambiental, que está presente em mais de 180 municípios do país, atendendo 16 milhões de pessoas.
Outros projetos como o do Beco da Cruz do Marduque estão em andamento em Uruguaiana – um, aliás, deve ser entregue até final de junho. Trabalhosa, a regularização desses assentamentos irregulares será fundamental na busca pela universalização dos serviços de água e esgoto nos próximos anos. O cenário é o mesmo na maior parte das cidades brasileiras. “Nosso desafio como investidores, e prestadores de serviço, é de junto ao poder público encontrar alternativas para viabilizar soluções customizadas para cada realidade” complementa Fernando Santos-Reis, diretor-presidente da Odebrecht Ambiental. A nova grande meta nacional de expansão do saneamento básico, fixada pelo Brasil e pela Organização das Nações Unidas em 2015 na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, quer “assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos” até 2030. O trabalho já começou.