SÃO PAULO – A arquiteta e urbanista Marussia Whately é uma das mais importantes referências brasileiras quando o assunto é água e saneamento. Especializada em gestão de recursos hídricos, ela coordenou o Programa Mananciais do Instituto Socioambiental (ISA) e é uma das idealizadoras da Aliança pela Água, coalizão criada para contribuir com a construção da segurança hídrica de São Paulo. Na última terça-feira 16, Marussia lançou o livro “O Século da Escassez. Uma nova cultura de cuidado com a água: impasses e desafios” (Editora Claro Enigma, 2016 – R$ 34,90), escrito com a jornalista Maura Campanili. Na obra, elas apresentam os principais conceitos associados à escassez de água, reúnem estatísticas com foco na situação brasileira e apontam possíveis caminhos para evitar o colapso no abastecimento. “Há grande demanda por inovação e empreendedorismo – e vemos que soluções criativas [de adaptação à escassez] estão aparecendo”, afirma Marussia.
Juntos Pela Água: O seu livro se chama “O século da escassez”? Já houve um século da abundância, quando se trata de água?
Marussia Whately: Alguns autores chamam o século 20 de século da abundância de água. Foi no século 20 que alcançamos uma escala de uso do recurso até então inédita. Seja por meio da irrigação, que viabilizou a revolução verde, seja por meio do avanço de tecnologias de captação de água de aquíferos cada vez mais profundos, seja por meio da construção de barragens em grandes rios, como o Colorado, nos EUA, ou o Paraná, no Brasil. O século 20 foi o século dourado da água.
Já o século 21 tende a ser o século da escassez – e por várias razões. Uma delas é a herança do uso indiscriminado da água que vimos no século 20 e que colocou várias regiões em alto grau de estresse hídrico. Temos ainda a poluição das águas e as mudanças climáticas. Aliás, veremos, cada vez mais, que será através da água que sentiremos os maiores efeitos das mudanças climáticas. Seja na forma das crises de escassez, com as secas e estiagens, ou na forma das crises de abundância – com as enchentes.
JPA: Hoje, a impressão que se tem é que vivemos “crises de água” cada vez mais intensas e frequentes. Você defende que a ideia de “crise de água” já não faz mais muito sentido. Por quê?
Marussia: A minha crítica à ideia de crise, na verdade, se aplica de forma bastante específica à crise hídrica no Estado de São Paulo. E a minha avaliação é que a crise recente pela qual o Estado passou é resultado de uma combinação de fatores. Teve o modelo de gestão, por exemplo, que deixou de lado investimentos adequados não só em novas fontes de água, mas também no reúso e no aumento da eficiência do consumo. Houve também a questão da poluição e do modelo de governança centralizado e não transparente. E, por fim, vimos um evento climático extremo e de alta intensidade, que foi a estiagem.
Mas, logo que choveu, muitos trataram a crise como algo superado, ou que se resolveu. Acontece que a crise hídrica permanece. Um dos fatores – a seca – passou, mas os rios continuam poluídos, temos altos graus de perda de água e o problema de governança não mudou. A crise, portanto, não foi uma pontual – uma que começa e acaba. A crise da água é estrutural.
JPA: No seu livro, você dá atenção especial à relação das cidades com a água. Por que as cidades são tão importantes na discussão sobre a água nesse século de escassez?
Marussia: Nas cidades, as pessoas são mais vulneráveis e dependentes dos serviços de abastecimento. Nesse sentido, fazer valer as garantias dos direitos humanos à água e saneamento é um desafio maior – principalmente entre as classes menos favorecidas. E mais, a população das cidades é especialmente vulnerável às consequências de uma estiagem.
Uma seca, por exemplo, pode rapidamente provocar uma alta nos preços dos alimentos e contribuir para a insegurança alimentar. Durante a estiagem de São Paulo, a porção norte do município, uma das que mais sofreu com a falta do recurso, também foi a que mais registrou casos de dengue. Então dar atenção às cidades, aos aglomerados populacionais, principalmente durante o século da escassez, deve ser prioridade.
JPA: Quando se fala em escassez de água, muitos logo pensam numa solução que se baseia, fundamentalmente, na ampliação da oferta do recurso. Existe um limite para esse tipo de solução?
Marussia: Com a escassez, o aumento indeterminado da oferta já não é mais opção. É ultrapassado e equivocado achar que vamos resolver os problemas de escassez de água apenas aumentando a oferta. Até por que continuamos contaminando as nossas fontes hídricas e comprometendo as condições para os ecossistemas garantirem a renovação da água, o que dificulta ainda mais a solução pelo aumento da oferta.
Precisamos é usar melhor a água que temos, garantir a eficiência na prestação dos serviços de saneamento básico, reduzir as perdas de água tratada, ampliar a adoção da água de reúso e estabelecer diferentes padrões de qualidade de água para diferentes usos. E não custa lembrar que, segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), 75% do consumo de água no Brasil é da agricultura, depois vem o uso para consumo animal e só então, o uso para consumo humano. São muitas as frentes em que podemos atuar.
JPA: Qual é o papel do saneamento básico nesse século da escassez?
Marussia: O saneamento básico tem papel fundamental, tanto para assegurar água em quantidade e qualidade, quanto para garantir cidades mais resilientes e adaptadas às mudanças climáticas – até por que teremos uma população cada vez mais urbana. Hoje, praticamente todos os rios em cidades médias e grandes estão poluídos por falta de saneamento básico. Isso tem impacto direto sobre o futuro da água no século da escassez. Fora que investir em saneamento é dar condições para um salto civilizatório da população – saneamento representa um ganho gigantesco em saúde, por exemplo, e em outros importantes indicadores.
JPA: Na discussão sobre o futuro da água, as perspectivas não parecem muito boas – a escassez, que já é regra hoje, deve permanecer. Mas existe algo com o qual podemos nos animar quando o assunto é o futuro da água?
Marussia: São muitas as oportunidades no horizonte e há grande demanda por inovação e empreendedorismo – vemos que as soluções criativas estão aparecendo. Durante a crise hídrica em São Paulo, por exemplo, vimos algumas soluções pontuais de inventividade, como a adaptação de cisternas e a invenção de chuveiros que guardam parte da água usada no banho. Há demanda também por ideias mais estruturais, como criação de sistemas de monitoramento do consumo de água que otimizam o funcionamento da rede e identificam vazamentos rapidamente. Ou ainda o desenvolvimento de soluções cada vez mais eficientes para o reúso de água. A recuperação dos ecossistemas produtores de água também está na mesa.
Compre o livro “O Século da Escassez – Uma nova cultura de cuidado com a água: impasses e desafios” no site do Selo Claro Enigma, da Companhia das Letras, por R$ 34.90. Leia um trecho de o “O Século da Escassez – Uma nova cultura de cuidado com a água: impasses e desafios”