SÃO PAULO – “Chegamos a um ponto sem retorno”, disse Patricia de Lille, prefeita da Cidade do Cabo, a segunda maior aglomeração urbana da África do Sul, em evento no dia 18 de janeiro. Depois de três anos de seca sem precedentes, disse Lille, a água da cidade acabaria em abril. A prefeitura colocou um site no ar que atualiza, semanalmente, a data do que o governo municipal chama de “Day Zero” (“Dia Zero”, em tradução livre) – o dia em que a distribuição será interrompida a todas residências e comércio, com exceção de hospitais, escolas e algumas poucas instituições fundamentais ao funcionamento da cidade.
Hoje, a expectativa é que o abastecimento pare em 9 de julho (ATUALIZADA EM 21 DE FEVEREIRO DE 2018).
A Cidade do Cabo, com seus mais de 4 milhões de habitantes, será a primeira grande cidade do mundo a ficar sem água.
Passado o “Day Zero”, os habitantes da cidade terão de buscar água, diariamente, em 200 postos espalhados pelo município. Cada cidadão poderá captar 25 litros de água por dia. Para garantir que o limite seja respeitado, todos os 200 postos terão forte esquema de segurança, com policiais armados e treinados para proteger as fontes de água. Segundo a revista Nature, a prefeita diz temer que o esquema rudimentar de distribuição leve à “anarquia”.
Como a Cidade do Cabo chegou ao “Day Zero”
Segundo climatologistas locais, a seca de três anos que jogou a Cidade do Cabo no caos hídrico é o tipo de evento climático que acontece uma vez a cada mil anos. Ou seja, dada a gravidade e o ineditismo do evento, mesmo a mais organizada e desenvolvida das cidades não passaria incólume por um desastre natural como esse. Mas, algumas coisas poderiam ter sido feitas de maneira diferente pela cidade e pelo governo federal da África do Sul para evitar o pior, que hoje parece inevitável.
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Atualmente, a cidade litorânea tem sete grandes obras em andamento focadas no aumento da oferta de água – quatro para produção por dessalinização, uma para produção por reúso e duas para captação de lençóis freáticos. Nenhuma estará pronta a tempo de evitar o “Day Zero”, sendo que a mais avançada está 60% concluída e cinco estão atrasadas, segundo informações da prefeitura. Segundo especialistas, os governos municipal e federal tinham condições e recursos para se organizar ter, concluídas, pelo menos parte dessas obras. Também não ajuda que só 55% dos moradores da cidade tenham reduzido seu consumo diário para 87 litros, como recomendou a prefeitura no início da crise.
A partir de fevereiro, esse limite vai cair para 50 litros diários por habitante, com multas de valor ainda indefinido para quem desrespeitar a determinação.
Cidade do Cabo: do bom exemplo ao desastre
A Cidade do Cabo já foi considerada uma das cidades mais “verdes” do continente africano. Em 2014, ela recebeu o prêmio de C40 de “Implementação de adaptações” por suas políticas de gestão de recursos hídricos frente às ameaças colocadas pelas mudanças climáticas. Mesmo com crescimento populacional superior a 30% desde o ano 2000, o consumo médio de água da cidade se manteve estável e medidas de conservação – como a manutenção das redes de distribuição, troca de hidrômetros e ajustes tarifários – regularam o uso do recurso.
Mas o sucesso dos esforços de conservação, segundo análise do The New York Times, cegou a cidade para importância de diversificar suas fontes de água – até hoje, o abastecimento depende de seis represas que, por sua vez, dependem das chuvas. Desde 2007, setores dos governos municipal e federal alertam para os riscos dessa dependência, principalmente em tempos de mudanças climáticas, quando as antigas tabelas de previsão de chuva já não são mais confiáveis. Mas nada de verdadeiramente efetivo foi feito.
Agora, a cidade e seus cidadãos – principalmente os mais pobres – vão pagar o pato. Sabe-se que, entre os moradores mais ricos da Cidade do Cabo, já está bem estabelecido um sistema de distribuição de água, por caminhão pipa, comprada em cidades vizinhas que não usam o mesmo manancial que atende a cidade. Entre os mais pobres, há só a expectativa do corte e os esforços para organizar algum sistema de estocagem e uso mais eficiente dos poucos recursos hídricos que ainda restam.
Aquecimento global, eventos extremos e saneamento básico
Segundo especialistas, eventos climáticos extremos, como a seca que castiga a Cidade do Cabo há três anos, devem se tornar cada vez mais comuns. E o impacto desses eventos climáticos extremos – sejam eles secas, enxurradas ou nevascas – na infraestrutura de saneamento não será pequeno e não deve se limitar à falta de água.
Quer entender melhor como as mudanças climáticas afetam o funcionamento da infraestrutura dos serviços de saneamento das cidades e o que pode ser feito para reduzir os impactos dos eventos climáticos extremos nos serviços de saneamento? Confira o especial “Saneamento e Mudanças Climáticas”, produzido e publicado pelo Juntos Pela Água em 2017 sobre o assunto, que traz vídeos, infográficos animados e estáticos, texto e foto.