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BRASÍLIA – “Chegou a hora de a gente repensar o Estado de Direito: é tempo de um Estado de Direito ecológico”, disse José Rubens Morato Leite, professor titular do curso de direito ambiental da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e mediador do painel “Direitos do rio: perspectiva das pessoas e dos cidadãos diante do direito ambiental”, que aconteceu na tarde desta quarta-feira 21, no Fórum Mundial da Água, em Brasília.

No palco, o acompanharam o advogado Lafayette Novaes Sobrinho, o ativista neozelandês Rawiri Tiriray, e Ailton Krenak, do Núcleo de Cultura Indígena. Na pauta, os desafios no caminho do reconhecimento dos direitos subjetivos dos rios – reconhecimento este que já aconteceu na Nova Zelândia e na Índia. “O direito é conservador, privatista, alinhado ao código civil e antropocêntrico”, reforçou Morato Leite. “Precisamos baixar os muros das universidades para conseguir uma abordagem mais transdisciplinar”, disse.

O exemplo neozelandês

Na Nova Zelândia, como registrou o Juntos Pela Água em matéria do começo de abril de 2017, os direitos de um rio já foram reconhecidos. Em decisão inédita, no dia 20 de março de 2017, o governo neozelandês concedeu ao rio Whanganui os mesmos direitos de uma pessoa. Com isso, o ato de poluir ou atacar o curso de água passou a ser tratado, pela Justiça da Nova Zelândia, como um ataque a um cidadão do país, com punições e consequências correspondentes.

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“A luta do meu povo pelo reconhecimento dos direitos do rio começou em 1883”, disse, durante o painel, o ativista neozelandês Rawiri Tiriray, que também é codiretor do Instituto de Pesquisa de Te Atawhai o Te Ao, a Maori, e vice-presidente de Nga Tangata Tiaki o Whanganui, entidade de governança do rio Whanganui. A briga está alinhada com o entendimento de mundo dos Maori. “Na nossa cultura, dizemos ‘Eu sou o rio, e o rio sou eu’”, afirmou Tiriray. “O rio é um ser tanto físico quanto espiritual, é um irmão”.

Ailton Krenak fala durante painel que trata dos direitos dos rios, no Fórum Mundial da Água: “Estamos em avançado estado de barbárie”, disse, sobre descaso com a água (Foto: JPA)

“Podemos traçar a nossas origens até o princípio do universo”, disse Gerrard Albert, principal negociador da tribo Whanganui na disputa pelo reconhecimento, ao jornal inglês “The Guardian” na época da aprovação. “Nesse sentido, não nos vemos como mestres do mundo natural, mas sim como parte dele”.

A decisão permite que o rio, por meio de seus guardiões, tome empréstimos, peticione a Justiça e até adquira bens. O rio também pode entrar na justiça – de novo, por meio de seus guardiões – contra a poluição de suas águas sem precisar provar que essa poluição tem impacto sobre a população, exigência que precisava ser atendida antes da mudança. “Estamos testemunhando um passo importante no sentido de preservar o ambiente em que habitamos”, disse o prefeito de Whanganui Hamish McDouall ao New Zealand Herald, um jornal local, também à época da aprovação.

O anúncio teve forte componente simbólico, mas também prático. Com o reconhecimento do novo status do rio, 75 milhões de euros, o equivalente a cerca de R$ 249 milhões, foram pagos em reparações ao rio e outros 28 milhões de euros, ou cerca de R$ 93 milhões, foram separados para cuidar da “saúde” do curso de água. Trata-se de um investimento proporcional à importância e ao tamanho do rio, que é o terceiro maior da Nova Zelândia.

Rio Doce: a experiência brasileira

Por aqui, o advogado Lafayette Novaes Sobrinho, representando um grupo composto por entidades composto pela Associação Pachamama, as redes de pós-graduação em direito das Universidades Federais de Goiás e Ceará, além da “Harmony with Nature”, ligada à Organização das Nações Unidas (ONU), protocolou uma ação em nome do rio Doce em novembro de 2017 na justiça de Minas Gerais.

Na ação, a primeira do tipo na história do Brasil, o próprio rio, que foi vítima do maior desastre natural da história do País – o rompimento da barragem de Fundão, da Samarco – pede proteção judicial contra futuros desastres. A medida exige, tanto o governo federal quando governo estadual de Minas Gerais, a elaboração de um plano de prevenção a desastres para proteger o rio e a população que vive no seu entorno.

“A constituição brasileira não prevê direitos da natureza, mas ela também não impede o reconhecimento desses direitos”, disse Novaes Sobrinho, durante o painel. “Não precisamos de uma mudança de legislação [para reconhecer esse direito], precisamos de uma mudança de cultura”, afirmou ele. Para o advogado – que disse ter se inspirado no caso do rio Whanganui, na Nova Zelândia, para entrar com a ação – o rio é parte fundamental da vida. E, por isso, precisa ter seus direitos reconhecidos.

O alerta de Ailton Krenak

Último a falar, Ailton Krenak, do Núcleo de Cultura Indígena, foi preciso em sua análise. Embora reconheça a importância e a vitória que foi conseguir garantir direitos aos rios, ele lamentou a necessidade de legislação para que se proteja algo tão fundamental quanto um rio. “Se temos que legislar para dizer que um rio não pode virar um esgoto, nós perdemos totalmente a reverência e o sentido de afeto com a Terra”, afirmou. “É comovente como somos eficientes na hora de nos unir para depredar [a natureza], nos comportamos como verdadeiros vândalos do planeta – estamos em avançado estado de barbárie”, finalizou.